sábado, julho 30, 2005

Tocqueville e o lugar da liberdade

No Público de sexta-feira (dia 20) são recordados os 200 anos do nascimento de Tocqueville.

Só li Tocqueville há cerca de um ano; li-o, ainda, no âmbito dos meus estudos sobre a causa do falhanço do comunismo e, em geral, das ideologias marxistas (ideologias de esquerda).

Há muitíssimos anos, pelos menos 30, estudei O Capital de Karl Marx (a única edição publicada em português está esgotada em Portugal, há muitos anos) e ainda hoje considero que a sua leitura deveria ser estimulada aos estudantes das Faculdades de Economia e Gestão.

Karl Marx em O Capital tece uma magistral tese sobre as Forças Económicas e os seus efeitos sobre a dinâmica da Economia; tese sustentada na História Comparada (o “laboratório” por excelência de praticamente todas as Ciências Sociais) e na sua interpretação.

Por exemplo, até hoje, nunca mais li nada de melhor sobre a Teoria do Valor; a forma como a esquerda portuguesa lida com o “dinheiro” mostra bem que os nossos ideólogos de esquerda nunca leram O Capital.

Ainda hoje as Universidades americanas, nas suas faculdades de Economia e Gestão, estimulam o estudo d’O Capital e, em muitas, constitui mesmo uma leitura obrigatória.

Há cerca de uma ano, quando li Tocqueville, fiquei impressionado e pensei para comigo que se tivesse lido O Capital depois de Da Democracia na América (e não o contrário, como me aconteceu) a “minha história” teria sido diferente.

O que acabo de ler sobre o pensamento de Tocqueville, no Público, veio dizer-me que não; que não teria sido diferente a “minha história” e, não teria sido diferente porque teria, com certeza, olhado Tocqueville com “outros olhos”, os “olhos” que procuravam a justificação das minhas teses preconcebidas e não as que o autor defende, de facto!

Com O Capital é mais difícil acontecer isso do que com A Democracia na América. O Capital está estruturado como tese académica (é um filósofo que a escreve) e se há, hoje, graves “corruptelas” na interpretação do pensamento de Karl Marx eu penso que isso é, essencialmente, devido às graves “corruptelas” existentes dos “Capitais Populares” e “extractos populares” que os partidos de esquerda andaram a “lançar” por todo o lado (e que parece serem os “únicos” lidos pelos seus ideólogos) para “orientarem” a sua interpretação no sentido que lhes interessa “salientar”.

Da Democracia na América; o primeiro volume está estruturado, essencialmente, como Crónica e o segundo volume como reflexão comparativa do que se passa nos EUA com o sistema político - administrativo francês. Eu digo “essencialmente” porque nos dois volumes há sempre alguma “crónica” associada a uma reflexão interpretativa das diferenças que Tocqueville observou entre as duas sociedades.

Ou seja, os riscos de reinterpretação “pessoais” de Da Democracia na América são elevados e, foi isso que “descobri” no Público.

Tocqueville não é um filósofo nem um sociólogo (isto é, um cientista social). Tocqueville é um Juiz francês que faz uma viagem pelos EUA, pouco depois da independência do País e durante a Revolução Francesa.

É alguém que esteve no “centro” de grandes alterações ideológicas e de praxis (de um lado e do outro do Atlântico) e que irão varrer o planeta durante os séculos seguintes; é alguém com elevada capacidade de observação, de reflexão e com treino específico em administração (e experiência política) que nos descreve o que viu e como interpretou.

A Democracia na América não é uma tese; apesar de tudo é um livro estudado, também nas Universidades americanas; Tocqueville consegue mostrar, com uma força invulgar e uma objectividade admirável, a diferença entre o conceito de sociedade nos EUA e na França, ou seja, na Europa (com excepção, até certo ponto, da sociedade inglesa).

Foi isso que me chocou no Público; parece que “ninguém” viu o “âmago” que Tcqueville nos aponta.

Não se trata de um problema de liberdade e igualdade; não se trata de um problema de democracia ou república ou alguma forma de monarquia; …

Trata-se sim, de uma questão de concepção de sociedade; trata-se de um novo conceito de cidadania; novo conceito, que a Europa nunca conheceu e a Inglaterra só tinha “cheirado”, até então.

Trata-se de um novo conceito do papel do Estado, inclusive do seu papel face ao Cidadão (papel esse, que ao longo da História europeia e mundial foi sempre o de “intermediar” a exploração dos “autóctones” por “elites”, que se auto – proclamam, se necessário, à força).

A “associação”, que aqui faço, entre O Capital e A Democracia na América é-me “imposta” porque se trata de dois livros essenciais para a interpretação das sociedades humanas sob o ponto de vista da respectiva organização política (embora não só) e porque “estimulam” (pelo menos, Tocqueville não “defende”) opções societárias (de organização social) diametralmente diferentes.

O Capital é um trabalho académico (científico) e a aplicação das suas teses têm falhado por todo o lado (o que não significa que não deva ser estudado seriamente e não haja aí teses fundamentais, inclusive filosóficas e científicas).

A Democracia na América descreve (e procura alguma interpretação, até mais ética que científica de) uma sociedade em estruturação segundo uma nova concepção; concepção essa que tem tido um elevado sucesso, pelo menos até aos nossos dias.